O teatro como expressão literária – considerações a partir da peça “Encontro”

Temos o hábito de separar em arquivos diferentes as diferentes formas de expressão artística: literatura, cinema, teatro, pintura etc. No entanto, quase todo o tempo, essas vertentes se tocam e precisam de certa comunhão para atingir o objetivo final de sua expressão. Talvez isso fique mais evidente quando pensamos em cinema, em que não importa tão-somente a significativa atuação dos atores mas o texto, o roteiro, a fotografia, a música, para criar no espectador um conjunto de significados.

Não estamos atento ao fato de que, por exemplo, com todos os recursos cenográficos que possa ou não ter, contando com a emoção na interpretação dos atores, o teatro começa como simples produção literária. Antes, na gênese do espetáculo, o que dá vida à ideia que o originou, é o texto elaborado para materializar, tornar real uma ideia de um autor. Não necessariamente através de um texto lírico ou poético, mas um texto através do qual a história se conte, as cenas sejam montadas, e através das palavras e das “vírgulas” propositais, um propósito se revele, seja fazer rir ou chorar, suscitar questionamentos ou anestesiar o espectador em relação à realidade.

Nem todo texto literário é dramatúrgico. Na maioria das vezes, é preciso reescrever o texto literário, adaptando-o a uma linguagem teatral para que se torne possível sua encenação, acrescentando-se diálogos, materializando-se cenários que, inclusive, são diferentes na mente de cada leitor etc. Como exemplos na nossa língua, os livros de José de Alencar, Machado de Assis ou Eça de Queiroz, que já renderam várias montagens, todas reescrituras da obra original. Há, contudo, obras que são essencialmente literárias mas cuja adaptação cênica é muito natural, como, por exemplo, escritos de Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto e Nelson Rodrigues (e não falo do Nelson dramaturgo, que já escrevia num registro próprio; mas, nesse caso, do Nelson cronista).

Toda peça dramatúrgica, contudo, é primeiramente uma forma de expressão literária, uma vez que nasce através de palavras, a partir das quais se constrói um universo de significados e busca-se a provocação do seu leitor. Somente quando o texto é representado, emprestam-se outras ferramentas de significação ao objeto original – cenário, representação física dos personagens, efeitos de luz e som – e aí texto vira espetáculo e realiza-se plenamente no universo teatral.

Pensei sobre isso após assistir à ótima peça “ENCONTRO”, de Walter Macedo Filho. A peça é muito bem montada, com poucos elementos cenográficos e estrutura. Os figurinos contam uma história, destacam a individualidade das personagens e o tempo em que habitam. O palco em que estão possui poucos e essenciais elementos cenográficos, mas bastantes para trazer-nos todo o ambiente em que se passa a história. A música: sutil, estratégica. É uma peça com poucos recursos físicos mas com muita força cênica. Para que isso aconteça, duas coisas são essenciais: a forte atuação das atrizes e a qualidade do texto dramatúrgico.

A atuação das atrizes é marcante (e marcada, já que a alternância das falas pontua recortes precisos de explanação emocional). Elas sabem utilizar-se das falas do texto de forma contundente, para alterarem-se em força e fragilidade. Vemos de muito perto suas expressões porque o público se senta, literalmente, no palco, e torna-se mais um espectador cúmplice do que se passa ali. E, tão próximo, destacam-se os detalhes das emoções, das variações de humores e sentimentos, como poderiam destacar-se as falhas, se as houvesse. Por isso, pode-se dizer que a atuação das três atrizes é muito precisa e que elas nos trazem para dentro dos acontecimentos e das memórias que compartilham, através das falas emocionais que proferem.

É o texto, então, que permite o destaque de toda emoção. É nele que se baseia toda a ótima atuação dramatúrgica das atrizes, eis que nele há todos os elementos da narrativa que encontra mais amparo na palavra do que em qualquer outro recurso cênico. O texto é o elemento de trabalho primeiro e o mais essencial na elaboração do encadeamento daquelas emoções que as personagens desfilam diante da platéia.

O texto teatral não precisa ser, essencialmente, poético ou lírico, mas apenas o condutor de uma narrativa eficaz de uma história. Entretanto, quando juntam-se todos esses elementos, é lindo, visceral.  É o que acontece em “Encontro”.

No início da peça, nas primeiras falas das personagens, parece que estamos diante de um texto hermenêutico, de interpretação difícil, pois o discurso é de idas e vindas de ideias ou de ideias em “looping”. Até que entendemos que não se tratam de ideias conflitantes mas do desenho das próprias perspectivas de cada personagem, conflitantes entre si e conflitantes para si próprias. De como nossas memórias nos enganam, nos atrapalham e criam cenários reais, ainda que inventados, sobre os quais embasamos nossas escolhas, possíveis mágoas, fortes sentimentos. Sobre o que talvez nem seja, de todo, real. Entendido isso, logo nos primeiros minutos de espetáculo, tudo fica mais fácil: cedemos e somos levados pela eloquência das personagens, numa ânsia de passar a limpo toda uma vida (fatos e emoções).

O rico diálogo das personagens percorre as angústias e as boas lembranças de toda sua formação emocional, possui tintas pesadas de mágoas e incertezas, é dramático até o fim. Mostra as percepções diferentes que duas irmãs possuem das mesmas vivências e do quanto essa percepção afetou individualmente cada personagem. Suscita em nós lembranças mornas também, porque fala do universo feminino, da relação que todos temos – homens e mulheres – com o feminino, com a figura materna ou da companheira, de como trazemos ainda adultos cicatrizes de infância que parecem tolas se contadas mas são profundas quando sentidas.

E o texto nos leva nessa jornada de forma primorosa, poética. Algumas falas, se recortadas da peça, são pura prosa poética. Sem perder seu papel de “contadora de uma história”, é fala saboreada. Clique abaixo cada uma delas para ve-las na íntegra :

Como todo bom texto literário, deixa em aberto várias interpretações, vários caminhos e, talvez, deixemos o teatro tentando reescrever na mente uma história retilínea, tentando uma cronologia dos fatos em cena ou responder quem são as mulheres, qual a relação entre as três, até que sorrimos, felizes, em entender que não importa. Importam as emoções suscitadas, as questões abertas. Importa perceber que fundamos nossas vidas a partir das nossas perspectivas de realidade, mais do que sobre o que é real de fato. Importa, por fim, saber que no enfrentamento do nosso passado, das nossas memórias, das nossas emoções, talvez reconstruamos uma nova história, mais crua ou mais amorosa, conforme nosso distanciamento nos permitir.

Se ao lirismo nos remete, à memória nos traz os versos de Fernando Pessoa: “Entre o sono e o sonho,/entre mim e o que em mim/É o quem eu me suponho/Corre um rio sem fim…”

Não é uma peça fácil porque não é despretensiosa. Mas também não é difícil porque fala de universos que reconhecemos. É teatro na veia, literatura na essência.  Por isso tudo, é boa demais.


SERVIÇO

Peça “Encontro

  • Autor/diretor: Walter Macedo Filho
  • Atrizes: Adriana Karla Rodrigues, Adriana Rabelo, Lis Maia
  • Montagem: Maio de 2017 na Casa Rio/Rio de Janeiro

Agenda:


LINKS SOBRE A PEÇA

https://vistolivre.com/noticias/teatro/2524/espetaculo-encontro-estreia-na-casa-rio.html

https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/peca-encontro-de-walter-macedo-filho-investiga-delicada-conexao-entre-memoria-realidade-21302909

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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