A humanidade que fuma o descaso

Aproveito-me de você, Holden Caulfield.

E vejo tantos como você, neste universo que adorna contemporaneidade, algum júdice de século XXI e retrocesso, muito retrocesso. O campo agora é maior, muito mais amplo. Nele não se fincam pés, nem há o que pisar. Aniquilaram-se as capacidades físicas. Mascararam-se em um espelho negro de aparelho. Ele que é o mundo todo. Não há mais nada. Em botões que não existem, eles apertam telas. As telas são sensíveis ao toque. As pessoas, não. Elas são sensíveis à tela.

A tela tergiversa a humanidade. A humanidade não tergiversa a tela. Estão inertes. Platonicamente inertes. Internertes. Inundados e afunilados. Peço perdão, Holden, por agora andar a seu lado, pegar de seu cigarro, tem mais um aí?, e caminhar a passos lentos, vendo pessoas que não me veem. Nem a nós. Você caminhou a América. Eu caminho esse Rio. Sim, este mesmo com todo este cheiro de pólvora. O quê? Bem, este leve cheiro salgado era a da antiga maresia que alargava a alma carioca do bem-estar. Esta alma está se esvaindo. É, está sim, neste cheiro de pólvora.

Eu também carrego a tela. Agora mesmo eu me faço dela, para escrever esse nosso diálogo suposto de encontro. Pressuposto. Somos todos tão assim: pressupostos de nós mesmos. Somos um personagem que vive o autorretrato, o neologismo do selfie – que eu deveria escrever sélfi ou sélfie, com acento, validando o anglicanismo natural de nossos tempos. Vivemos a sinceridade da foto na rede social, sorrindo bicos, poses exóticas, efígies de uma nova coletividade que não mais representa grupo, mas semelhança. Aceitamos a semelhança, pasteurizamos a sincronia dos rostos. Nossa personalidade é forjada no pressuposto da foto. Até mesmo do altruísmo fingido que vira longo texto em alguma rede social.

Rede social. O que antes traduzia esse seu grupo, essas suas pessoas tão próximas, que formavam a comunidade física, hoje se torna global. Não porque trocamos palavras, encontros num lago, numa praça, numa igreja, numa estação de trem. Eles se perderam na foto do tempo também. Nem mais são pintadas essas praças, elas estão cinzas de todos os abandonos. Não prestam para mais nada. Só se a pintarem com uma rede wi-fi. Aí a praça tem todas as cores, todas as telas, todas as tribos. Essas tribos são novas comunidades, Holden. E o pior, elas não andam como você, que quis fumar o seu desencontro. Eles – e nós – estamos todos desencontrados.

Até diria, desconstruídos.

Holden, eu aprendi com você que é importante essa vida longe do que ditam. Ensinou-me muito, cara. Não, guarda esse teu cigarro. Fuma o meu. É novinho, comprei agora a pouco. Com fósforo é melhor, não?, sim, é, que se dane esse negócio de fósforo, isqueiro, é tudo pra queimar o cigarro. Tenho realmente que me preocupar menos. Mas, assim, é fácil me despreocupar quando tenho grana, não tenho que trabalhar, é fácil dar a mínima pras coisas quando todas as outras já estão resolvidas, não é mesmo, camarada?

Holden? Holden? Volta aqui! Holden? Caramba, cadê você?

 

É, você nunca esteve aqui.

Você é a suposição desta tela, deste maluco que escreve, desta desconexão com o mundo. Você, eu, o mundo, é tudo o descaso. O descaso de não mais se preocupar. Não mais envelhecer. Não mais ter empatia. Não mais nada. Indivíduos em sua individualidade de pouco se lixar.

Você estava pouco se lixando pra mim. Eu que te conheci nesse campo. O campo era seu livro. Eu apenas li o livro. Não vi seu campo. Senti seu campo. Imaginei você.

Eu te imagino agora.

Você nem imagina quem eu seja. Ou o que eu seja.

Eu sou essa voz textual. Que não é voz. É digitação.

Eu sou a total nulidade. Na tela. Que não é tela.

É nada.

Dica de Livro.

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.

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