Uma leitura de Manuel Bandeira: “A Dama Branca”, o fim com que se convive intimamente

Num universo particular, a morte me tem surgido como tema recorrente. E, num desses dias em que a alma busca elaborar sentimentos, ideias, lembrei-me de Manuel Bandeira, que sempre me intrigou, desde muito menina, na sua relação sem cerimônias com a morte.

Quando conheci a poesia de Bandeira, soube, de início, o paradoxo existente na biografia do poeta: tuberculoso e condenado a uma morte iminente aos 18 anos, viveu até os 82 anos, tendo gastado toda sua juventude esperando pelo fim que só conheceria idoso. Claro, essa é uma conclusão superficial acerca de sua larga existência mas, ainda assim, bem real.

Diz-se que não se deve usar a vida do poeta para lerem-se os seus poemas, que isso restringe o valor da obra. Concordo que poemas (textos, em geral) dizem muito mais do que seus autores gostariam de dizer, vivem além das ideias que os geraram e encontram nos olhares que recolhem suas palavras novos significados e interpretações talvez até melhores do que as originais.

Mas, para mim, talvez porque a morte seja um tema intrigante quando se é jovem e não se entende o que é sentir-se mortal, ou seja porque é, de fato, o ponto de passagem para o desconhecido (de um ponto de vista esotérico ou não), ler os poemas de Bandeira e não perceber o quanto essa vida inteira de espera impactou seu olhar com angústia e com redefinições de beleza e encantamentos é impossível. Então eu deveria dizer “não façam isso em casa, crianças, é perigoso” (digo, comparar as figuras do narrador e do autor). Mas, mesmo eu, metida a interpretações largas, folheio Bandeira presa à raiz de sua inspiração.

Bem, eu dizia, nesses dias em que o tema recorrente era a morte, um poema específico de Manuel Bandeira me martelava a memória. Com calma, sob a clara tarde de um domingo, abri o livro em que ele estava assinalado entre os meus preferidos: “A Dama Branca”. Ei-lo:

A DAMA BRANCA

A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Era sorriso de compaixão?
era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,
Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também
A cada júbilo interior.
Sorria como querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! de tísicos?
Por histeria… quem sabe lá?
A Dama tinha caprichos físicos:
Era uma estranha vulgívaga.

Era… era o gênio da corrupção.
Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.

Ao pobre amante que lhe queria,
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má,

A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.

Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. E imaginais!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.

Gosto de como Bandeira apelida a morte de “dama branca”. Gosto da ideia de luz e mansidão que sugere a palavra “branca”, ao contrário das trevas que associamos ao luto, estampado em vestes negras e rios de sobriedade.

Não há como descartar desse poema seu forte traço autobiográfico, quando o autor, de início, enuncia “A Dama Branca que encontrei,/ Faz tantos anos,/ Na minha vida sem lei nem rei,/ Sorriu-me em todos os desenganos”.

Nessa primeira estrofe se expõem várias informações: que a morte lhe foi anunciada precocemente, bem cedo na vida (“eu encontrei/faz tantos anos”); que a vida vivida até o encontro com a possibilidade da morte era sem rédeas, sem limites (“na minha vida sem lei nem rei”); que, após ser confrontado com a real existência da morte, essa ideia foi constantemente presente na sua vida (“sorriu-me em todos os desenganos”).

E não só nas tristezas e decepções, a ideia da morte lhe assalta. Também nos momentos de alegria. Nos bons e nos maus momentos da vida, a morte é sempre uma referência (“a Dama Branca sorriu também/em cada júbilo interior”). E anda ao lado do autor vida afora, companheira de estrada, latente, possível, presente mas discreta, apenas parte do cenário em que ele habita, fazendo-se notar mas sem impor sua morbidez nem esfregar-lhe na face sua fragilidade. Diz o autor “(seu sorriso) Não era mofa nem dó. Senão, /só nas tristezas me sorriria”.

Mas isso não anestesia o autor nem o faz perder a perspectiva de que é a morte quem decide o momento e quem subjuga a vida a sua vontade, e não o contrário. É ela quem escolhe quando ir e vir e quando evidenciar-se num sorriso que o intriga (Compaixão? Zombaria? Por que sorri?). Ela tem caprichos (“A Dama tinha caprichos físicos”) e ela está no comando da situação (“Ao pobre amante que lhe queria, / Se lhe furtava sarcástica”).

No final do poema, o elemento de surpresa no roteiro de vida: a morte esperada por anos a fio, ideia obsessiva, leva-lhe o pai antes de levar o autor, num gesto inesperado e que reafirma o controle do imponderável sobre o previsível.

Um outro aspecto interessante do poema é a forma sensual com que se constrói a figura da morte. Se, por um lado, no passado, a imagem do tuberculoso, do doente condenado, carregava um certo romantismo, associada, sempre, à tragédia romântica, à não realização de um amor duradouro, por outro lado, Bandeira, em sua poesia, de forma geral, tece versos através dos quais representa a sexualidade, o desejo sexual em si, sem necessariamente estabelecer conexões com o amor romântico. Suas citações à sexualidade, muitas vezes, têm mais relação com a doença em si (acreditava-se – ainda acredita-se? – que os tuberculosos têm interesse sexual aguçado) e com a sede de viver e sentir-se vivo do que com uma descoberta romântica.

Em “A Dama Branca” a morte é descrita como uma mulher fatal e isso não é um clichê. Na verdade, causa um estranhamento no leitor. Uma mulher que tem caprichos físicos, desejos, que ele chama de prostituta (“vulgívaga”, ele diz), “gênio da corrupção”, “tábua de vícios”. O doente que espera o dia de sua chegada, ele chama de amante (“ao pobre amante que lhe queria”) e a recusa da morte em levá-lo é descrita como um comportamento furtivo e sarcástico, como num jogo de sedução e conquista. Isso nos leva à lembrança de um trecho do conhecido poema “Vou-me embora pra Pasárgada“, em que morte e eroticidade também se entrelaçam: “E quando eu estiver mais triste/Mas triste de não ter jeito/Quando de noite me der/Vontade de me matar/…/Terei a mulher que eu quero/Na cama que escolherei“. Num jogo interessante de imagens, também ali a  mulher que o aguarda para o encontro amoroso é vida e é morte e é através de sua eroticidade que o autor espanta a morte e se entrega à vida.

Sobre o sentimento do homem entre essas duas realidades constantes (vida e morte), os versos mais conhecidos talvez sejam o de “Pneumotórax” (“A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.”), assim como a conclusão irônica e crua que fecha a descrição da cena dramática descrita nesse último poema citado: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”. Mas, para mim, é em “Dama Branca” que vários temas recorrentes na poesia de Bandeira (doença, morte, sexualidade, brevidade da vida) se entrelaçam e vendem de forma perfeita a noção de que se perde muito ao esperar pela morte, não porque se vai morrer, propriamente, mas porque se vai deixar de viver nessa espera; porque na fixação do nosso olhar sobre a expectativa do fim da vida, toda uma existência pode passar por nós sem ser notada (talvez poucos, talvez muitos anos); porque o fim das coisas e o nosso fim é previsível desde que nascemos mas, paradoxalmente, é sempre surpreendente porque é aleatório, inesperado, e está submetido a uma vontade maior, se não de um Deus, ao menos de um círculo universal – como no poema, o trecho citado em que o autor flerta e espera a chegada da dama que, de forma surpreendente, entra em sua vida para levar seu pai e deixá-lo, mais tempo, nesse tempo de espera.

A poesia de Manuel Bandeira é riquíssima de imagens e ideias acerca da brevidade da vida e do convívio permanente com a morte, nem sempre percebido pelo homem. Nem por isso, é mórbida. O poeta possui um jeito cru de descrever sensações, mas se o faz de forma profundamente real, também o faz com ironia e com beleza. Pinta imagens muito reais e muito emotivas como poeta e soa, muitas vezes, como um cronista-observador da vida. Volto sempre à Bandeira quando quero entender as subversões que a vida faz ao meu redor e sempre me acalmo pensando “é a vida, é triste, é bela, é ilógica…nem por isso deixa de ser poesia e de encantar-nos”.

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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